O ano era 1968 e eu era o mais velho de uma prole de oito irmãos. A segunda filha na ordem cronológica morreu muito nova. Eu tinha apenas dez anos. Morávamos no Sítio Bela Flor, município de Brejo do do Cruz-PB.
Naquela fatídica noite, meu pai conhecido em Catolé como Seu Basto(lá era BASTO Praxedes) não estava em casa. Nos sábados ele vinha na sua humilde bicicleta para Catolé (questão de economia) ajudar nossa Vó Sininha, que tinha uma banca de sandálias no antigo mercado público.
Sorte! Sorte nossa! Caso ele estivesse em casa teria sido assassinado por uma polícia corrupta, que vinha com o instinto assassino dos pistoleiro de aluguel. O delegado da cidade recebeu para eliminar covardemente nossos pais. Eu tinha apenas dez anos.
Por quê tal façanha por parte de alguém que tinha a obrigação de oferecer segurança? Resposta simples: Os covardes se tornam heróis quando estão frente à pessoas indefesas. São covardes transvestidos de autoridades minúsculas.
Você com certeza tá perguntando: O que ocasionou essa revolta? No Sítio Riacho Escuro( propriedade do agropecuarista Zé Targino), morava um irmão de minha mãe por nome de Francisco Saldanha da Silva( tinha o apelido de Chico de Sininha). O filho que não tem pai sempre carrega o nome da mãe.
Meu Tio Chico era casado com uma filha de Zé Targino. Zélia é seu nome( no momento que faço esse texto ela vive). No dito sábado que meu pai estava em Catolé, aconteceu uma briga entre dois filhos do fazendeiro já falecido: Joda e Paulo, esse o mais novo dos três filhos do Sítio Riacho Escuro.
A briga foi pela manhã. Joda um dos contendores veio para a feira de Catolé. Chico de Sininha morava perto da sede da Fazenda. Tomou conhecimento do fato e foi lá pensando em fazer o bem, terminou participando do mal.
Era noite. Minha mãe já havia agasalhado a turma para dormir. No sítio era normal dormir cedo naquela época. De repente pancadas na porta principal. Era Zélia, esposa de meu Tio Chico. Aflita. Minha mãe abriu a porta e ela chorando foi logo dizendo: ” Chico matou Joda”! Meu Deus! Naquele momento parece ter caído sobre nossas cabeças. E agora? Fazer o quê? Muitas interrogações estavam presentes. Respostas nenhuma. Rezar e esperar!! Ninguém apareceu para nos ajudar.
Minha mãe, vítima de outros quadros dolorosos, pintados com o sangue da dor na sua simples e triste infância, sabia que o mal estava para chegar. Não sabia ela que tal vingança viria pelas mãos criminosas de um delegado cruel, corrupto e covarde.
A primeira atitude de minha mãe foi pedir que Zélia saísse rapidamente e fosse ficar num lugar seguro. Até hoje não sei onde ela se escondeu. Em seguida minha mãe ordenou que fosse até o açude onde meu Tio Didi estava pescando e falasse para ele fugir o mais rápido possível. Voltei para casa.momento crucial. Dormir? Não dava! Nervos à flor da pele. O medo estampado na face daqueles que entendiam o que era medo.
O tempo passava em conta gotas. O silêncio da noite deixava o quadro mais negro. Na nossa casa estava Tia Dita, irmã de meu pai e casada com Tio Didi. Aquele que estava no açude. Ele tinha o nome do seu pai Luís, que foi assassinado quando minha mãe tinha apenas sete anos. Ela é a mais velha dos filhos de Sininha. Meu avô Luís Cesário foi assassinado covardemente por três primos seus na Lagoa de Pedra, palco de guerra, localizada no município de Patu-RN.
Nunca. Jamais esquecerei aquela noite de dor e sofrimento. Até hoje agradeço a Deus. Meu pai não estava em casa. Sua presença o levaria à morte pelas mãos criminosas de um sargento covarde que estava sendo pago para matar. O dinheiro era sua lei e razão. Um homem da lei sem lei, pago para humilhar, massacrar e matar. Estávamos à mercê de um bandido fortalecido por uma farda suja e cruel.
Noite que nunca será esquecida. Marcou minha vida. Marcou minha simples e pobre existência. Essa tormenta vivenciada naquela noite de humilhação, dor e sofrimento, é responsável por uma amargura que dilacera meu peito.
O momento cheio de medo piorou, quando pancadas fortes soaram na porta da frente. O desespero tomou conta daqueles que já sabiam o que era medo. Os irmãos menores apenas figuravam naquele quadro pintado sem respeito e deboche. Minha mãe sofreu todo tipo de humilhação que um ser humano pode suportar ou não suportar. Um momento marcou minha vida para sempre , quando meu irmão, abaixo de mim não suportando as marcas de prisão em relação à minha, chorou com medo de perder nossa genitora. O sargento fraco, covarde e Valente para crianças, ameaçou-o grosseiramente. Olhei para meu irmão e no silêncio da dor, olhos lacrimejantes , senti minha fragilidade perante uma autoridade tão cretina e perversa. A farda e o dinheiro prometido, encorajavam um covarde que ultrapassava seus limites, usando de uma força sem razão para amedrontar crianças indefesas e uma mais sem proteção num mundo injusto.
Um novo dia surgiu cinzento e nebuloso. Sozinhos. Abandonados à própria sorte. De repente uma salvação. Nossa Vó Sininha enviou um carro para nos transportar até Catolé. A triste e humilhada família partiu! Eu fiquei. Precisava terminar meu ano escolar. Fiquei na casa de um senhor chamado Zé Mota. Menino triste. Minha vida foi sempre marcada pela tristeza. Agora uma tristeza muito mais forte.
Logo após a saída de nossa família para Catolé, a famigerada polícia apareceu novamente. Soube depois que eles vinham para assassinar nossa mãe. Vi quando eles passaram num corredor que dava acesso à nossa casa. Subi numa cerca e fiquei olhando. O coração de menino sofrido, acelerado, só aumentava minha dor. No momento que escrevo esse texto doloroso, lembro de meu pai que viveu apenas para sua família. Seu Basto( nosso pai), morreu em 2003. Minha mãe não mora mais em Catolé. Alguns irmãos ainda moram na terra que nos acolheu(Catolé). Outros foram embora. Mesmo com todas as dificuldades, sinto falta daquela casa.
Meu Tio Chico morava no Ceará. Certo dia apareceu por aqui. Estava de passagem. Ia para Caruaru em Pernambuco. Sempre bondoso, levava uma cesta básica para uma irmã de meu pai que estava passando dificuldades. Antes de passar no Sítio Bela Flor foi até Brejo do Cruz. Ficou na encruzilhada da vida. Foi assassinado covardemente pela polícia que se corrompeu mais uma vez. Ele estava embriagado e acompanhado por um filho de doze anos. Viajava com ele um pobre pai de família que também foi assassinado. O crime que ele havia praticado, já estava prescrito. O medo que alguém tinha por conta de alguma falha em sua vida, matou Chico de Sininha. O delegado de Brejo do Cruz que arquitetou esse crime causado por homens da segurança, também foi assassinado em sua terra natal. O mandante do crime, talvez sufocado pelo medo e sua covardia, não suportou a carga nos seus ombros e faleceu de morte natural!! Natural??
Lamento! Vidas ceifadas. Vidas perdidas e filhos sofridos na dor da perda.
Chico de Sininha ainda chegou a fazer as pazes com um cunhado que restava daquela família. Paulo aquele da briga com o irmão e que resultou nessa tragédia, foi assassinado em Brejo do Cruz.
Lamento! A dor causada por tudo que aconteceu me acompanha até hoje.
Professor Pedro Neto (Professor Lé)