À época de meus pais, a “Rua grande” aparentava bem maior que hoje. Começava numa extremidade da terra e terminava detrás do sol. Havia uma igreja, casarões, sobrados… Às noites eram acesas pelo lampadário na hora de sempre.. – E pouco importava ser um carrilhão de pirilampos. Fazia-se a luz. E isso bastava.
A “Rua grande” de meus pais se sustentava por meio de um comércio de fina flor, à moda parisiense. Transcursar a “Rua grande” era um estágio santificado. Alí, o lugar de todas as festas… Onde se passeava com suas prometidas de vestidos acetinados e anáguas… E seus desejos à flor da pele, mas contidos em respeito.
De manhã, a “Rua grande” de meus pais, vestia-se; e, às madrugadas, despia-se para, entorpecida, guardar-se para o dia seguinte. Um sono abalado, apenas, pelos passos apressados de quem preferia se revelar às horas mortas. Essa era “Rua grande” de meus pais.
Hoje, com a força estúpida do progresso, puseram-lhe paralelepípedos e asfalto, iguais vestes de agouro; e por último, flores sem graça. E pareceu-me que ela estava desfalecida, bem diferente daquela rua de feições primárias, mas viva e apaixonante… A “Rua grande” de meus pais. Os traços do novo facilmente nos iludem.
Onde estavam os verdadeiros matizes? Os comerciantes remodelaram as suas fachadas. Os carros ziguezagueavam inoportunos. Os sons eram, agora, de alvoroço. Às horas não pareciam mais estar sendo medidas por um relógio de areia… A palidez característica sumira, naquele cenário avassalador de sinal dos tempos.
Um canteiro rasgava a rua ao meio numa analogia do mar morto… – Para que as almas de meus pais e dos pais de meus pais pudessem enfim atravessar… Era isso!. Fugidias, todas elas, para aonde iriam?… Sem ternura não há perspectiva… – Elas iriam para lá.
Às famílias retornaram às calçadas de braços dados com a eternidade. Boêmios e seresteiros, por assim dizer, desafiavam os corações solitários com seus violões e bandolins. E, dos parapeitos dos prédios, agora, reerguidos, as mocinhas trocavam juras de amor… Mas, só assim, espiritualmente, é que a “Rua grande” de meus pais estaria transitável como antigamente.
Uma sombra se move devagar por entre os prédios da Solón de Lucena, outrora “Rua grande” de meus pais. Houve quem dissesse que o espectro era a reencarnação de tudo que já foi vivido… – Imerso na lembrança, é que eu pude enxergar o que havia entre os dois mundos. Naquela rua, reside também a mim. Então, peguei o que restou da “Rua grande” de meus pais e o dobrei em mil pedaços.
Em meu testamento deverá estar escrito, em caligrafia legível, que as cinzas do que eu fora, deverão ser espalhadas naqueles confins de mundo: a “Rua grande” de meus pais. E que meu coração seja antes arrancado de meu peito para que fique sincronizado às batidas do relógio da Matriz até o derradeiro dos tempos.
*Misael Nóbrega de Sousa
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